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sábado, 12 de dezembro de 2009

Memórias: Uma delas, uma daquelas

Saímos naquele dia de manhã em direcção a Bucareste. Era véspera de Natal e ali íamos nós em mais uma viagem, donos de uma liberdade tão só nossa definida por “juventude” e partilhada por dois “irmãos”. A neve dos últimos dias já tinha desaparecido e os campos voltavam à cor da terra acastanhada com reticentes verdes que despontavam por ali. Acho que, pela primeira vez desde que havia chegado à Roménia, viajava num comboio com menos de 20 anos, bastante recente até, coisa rara por lá.

Bucareste recebeu-nos fria e preguiçosa no acordar. O meu companheiro de viagem, Iulian, ofereceu-se para me acolher em sua casa durante uns dias e agora, estava também a servir-me de guia para que eu pudesse conhecer um pouco mais daquele país, conhecer as gentes no seu modo de vida, na sua cultura, na sua maneira de ser. E são gentes acolhedoras como quaisquer outras. Enquanto todos os meus colegas do programa Erasmus tinham decidido passar o seu Natal em casa com a sua família, eu decidi ter uma ideia diferente, um pouco mais arrojada, e quando o Iulian me convidou para passar uma semana em sua casa no Natal eu não hesitei. Durante a manhã vagueámos pela cidade conhecendo o que por ali havia. É uma cidade bonita, cheia de história como é normal para uma capital como esta, com uma arquitectura bastante rica da qual faz parte a imponente casa do Parlamento (que é tipo a casa Branca romena e é somente considerada a maior casa em todo o mundo) e um belo jardim. Um grande jardim que, se a memória não me falha e traduzindo para português, se chama “Jardim dos Sonhos”. Achei engraçado o dito jardim. Com longas filas de cadeiras, muito verde e cheio de “amores-perfeitos” floridos no meio do frio e do gelo de Dezembro. As pombas também lá marcam grande presença como em Portugal, ao contrário de na cidade de Cluj-Napoca (onde eu estudava) que é habitada por milhares e milhares de corvos. Enquanto perscrutávamos o jardim e os seus recantos (os edifícios, os longos relvados, o lago que no Inverno se transforma em pista de gelo para patinagem amadora) olhei curioso para um grande eucalipto centenário. Procurei a melhor posição para o fotografar com o Iulian em pano de fundo e enquanto tirava aquela foto, uma imagem prendeu-me a atenção. Uma imagem daquelas. Daquelas simples mas que pelo seu significado nos marca para a vida. Chamei o Iulian e comentei com ele aquilo que me parecia ser um homem a segurar uma pomba nas suas mãos. As pombas, apesar da proximidade que permitem aos humanos, são animais com o seu tanto de bravio e não é nada fácil apanhar uma. Aquele senhor não só segurava aquela nas mãos com outras tantas à volta, como a pomba não se mexia e estava ali serena numa situação em que a sua natureza a devia fazer-se escapar das mãos que a prendiam. Ficámos impressionados com aquela proeza e o Iulian dirigiu-se logo ao senhor, curioso a saber como ele fazia aquilo. O senhor aparentava entre 50 a 60 anos vestido de forma humilde mas bem vestido e composto. Arriscava talvez dizer que seria alguém que vivia sozinho. Quando nos aproximámos o Iulian perguntou-lhe qualquer coisa em romeno mas ele não respondeu. Parecia absorto no seu mundo interior, como que mergulhado num autismo egocêntrico sem capacidade de acesso a outros sentidos para além do seu pensamento. Reparámos então que o senhor estava a chorar e, num gesto terno, encostou suavemente a sua cabeça ao peito da pomba que segurava nas mãos. Chorava na dor de quem tinha perdido um filho, de quem tinha perdido uma mulher, de quem tinha perdido uma família ou o resto dela. De quem estava sozinho e não tinha com quem partilhar aquela noite especial. Atordoados com aquela cena meio surreal ficámos sem saber o que dizer, o que fazer, e decidimos afastarmo-nos para o deixar só na sua melancolia. Mas aquela imagem não me saía da cabeça. Nos seguintes minutos vi aquela imagem vezes sem conta. A imagem de alguém sozinho. De alguém que estava sozinho no mundo e que procurava escutar de perto o bater do coração daquele ser vivo que se deixava levar na solidariedade pela tristeza das mãos que o seguravam. Lembrei-me da forma como tantas vezes nos queixamos daquilo que temos e do que não temos. Lembrei-me que, mesmo a 2500 Kms de casa, tive uma família que me acolhesse na noite de Natal e aquele homem parecia estar sozinho no mundo e tinha apenas aquele bater de coração que segurava nas suas mãos para se sentir vivo e minimamente acompanhado. Senti-me mal por não poder partilhar aquela família com ele, mas nem sempre podemos fazer o que o coração nos grita e às vezes temos mesmo que ficar quietos e de mãos atadas.Prosseguimos o nosso caminho sempre com aquela imagem em loop na nossa cabeça mas tentando não falar nisso. Demos a volta ao jardim e passámos naquele sitio outra vez, não na esperança de presenciar o sofrimento, mas antes com a ânsia de rever aquela imagem que tanto nos marcou. Mas o homem já lá não estava. Havia ainda algumas pombas ali à frente do coreto, a voar ou pelo chão em busca de migalhas, mas o espaço já não tinha aquela imagem mágica para o preencher. Continuámos então a nossa viagem pelo resto da cidade. Vimos um pouco mais da arquitectura clássica que preenche aquela linda cidade e ainda passámos por uma barraca de oferta de abraços. Talvez aquele homem devesse ter passado naquela barraca. Talvez um abraço amigo o tivesse ajudado, mas nem a isso ele teve direito.Antes do fim do dia pegámos o metro até à estação de comboios e corremos, corremos, corremos até apanhar o comboio. Conseguimos entrar no comboio com ele já em andamento, pelo que não tivemos tempo para comprar bilhete na estação. Pagámos meia dúzia de dinheiros ao revisor para não nos cobrar o bilhete (denote-se que é prática comum naquele país) e seguimos duas horas de viagem até casa.

Ao chegar a casa lá estava aquela família que era minha também por uns dias. Eu comunicava com o Iulian e com as duas irmãs (as duas médicas) em inglês, mas com os pais a comunicação era mais restrita. Contanto nada disso me impediu de ter sido muito bem acolhido durante aqueles dias. Era noite de Natal e a ceia (apesar de eles nem saberem o que é bacalhau) foi bem recheada como se fosse em Portugal. Fizemos serão, trocámos prendas, tirámos fotos e fizemos uns vídeos animados. Alguém de fora dificilmente diria que eu apenas conhecia aquela gente há uns dias, tal não era o à-vontade que se fazia sentir entre nós. Liguei para Portugal e utilizei as novas tecnologias para mostrar como me estava a dar bem na noite de Natal mesmo tão distante da minha família. Lembrei-me novamente daquele momento marcante, daquele homem. A tristeza aflorou-me aos olhos mas repulsei-a. Esqueci aquilo e fui-me deitar quando a casa já estava em silêncio. Apesar de tudo, a única coisa que posso fazer é ignorar a tristeza dos outros quando não os posso ajudar e fazer de conta que aquela imagem nunca me entrou na cabeça. Fazer de conta que a tristeza não existe. A ignorância é uma bênção, tal como diz o Doutor. Mas isso é necessário. É necessária ponderação. É necessário esquecer. Ajuda-nos a não cair na melancolia e a viver melhor. Deixarmo-nos levar sempre por aquilo que nos pede o coração é como deixar um homem guiar-se apenas pelas suas hormonas, e isso não tem lá muito bom resultado sem um pouco de controlo… Esquecer o resultado mas não esquecer a mensagem, porque essa… essa ajudou-me a saber agradecer diariamente cada sorriso que me oferecem e cada momento de alegria que me proporcionam. Agora sei agradecer quando sou feliz e esquecer quando sou triste.


É Natal, ele está a chegar. Já teve mais significado que agora, mas não deixo de sorrir e dar graças por estas épocas diferentes, estes momentos de alegria e compartilha que são únicos, onde quer que estejamos. E enquanto não for capaz de agradecer o pouco que tenho, nunca serei merecedor de mais.


Votos de uma boa época natalícia.