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domingo, 27 de julho de 2008

Profetas da desgraça

É um sol que brilha hoje, era chuva ontem. “O tempo anda instável” e a expressão é mais séria do que se pensa. É um mundo este como não era o de antes. O destino é mesmo a mudança e consumição que leva ao fim de tudo. Este pequeno albergue que nos transporta não é excepção relativamente ao seu conteúdo.
As sombras que as nuvens desenham pelo meio das montanhas já não são mais simples fenómenos da natureza, são agora agoiros malignos da acção do homem na caixa de fósforos em que vive, enchem de sombra obscura e atemorizante pequenos espaços que se vêm privados da luz do astro que alimenta a vida biológica.
Pelo meio da chuva chego a casa ontem vindo de um calmo passeio perfumado de romantismo. Não é uma tempestade e cai suave e pachorrenta, até vem saborosa mas vem desajustada no meio deste verão escaldante. Bela noite esta na sua acalmia. Como que perdido na rua, encostado a um muro de jardim, indiferente à chuva que molha mais do que tolos, um velho com aspecto de mendigo fala sozinho enquanto enrola tabaco para alimentar o seu vício. Não é já mais um tolo. Fala sozinho mas não é solo na sua atitude, outros há por aí espalhados pelas ruas e tropeçamos todos os dias neles sem dar conta. Falam em murmúrios esquisitos nos seus gritos inaudíveis que não são fruto de total insanidade. Eles são profetas da desgraça que nos espera, da loucura espasmódica que nos toma a cada minuto, da evolução da desgraça que já vivemos e que não tarda muito em dar o seu sinal mor. São seres que não percebemos, não entendemos e a que não damos valor, mas a sua missão é cumprida e os tolos apressados e os lentos ociosos não se dão ao trabalho de os ouvir e de ouvir o seu sinal.
Vivemos já enterrados numa desgraça, uma desgraça que de graça não tem nada, é de borla mas não tem piada. Uma síndrome caótica dos tiros no pé que damos todos os dias inconscientemente na nossa desculpa da evolução e no desleixo do comodismo. Queria ter a coragem para ser um downshifter neste mundo apinhado de pressas inconscientes que não nos leva senão à perdição, mas não posso, estou demasiado preso, preso a tudo, a todos, preso a responsabilidades armadilhadas que não posso largar sem morrer socialmente. Pouco se pode e se consegue fazer. Ter um bocadinho de consciência não é mau e não nos impede de ser felizes, já a responsabilidade mata-nos mesmo. Não há realmente muito a fazer mas morram vocês lá com o dinheiro debaixo dos colchões que eu cá vou é aproveitar a vida, é que o fim chega já algures depois de amanhã. Medo? Não, não tenham medo, ser downshifter não é ser inconsciente, é tomar o sabor, o verdadeiro sabor. Tenham apenas um pouco de consciência e sejam capazes de perdoar que este estado terrestre logo se torna um mundo melhor para viver no meio de toda a desgraça.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Paixão? Amizade? Amor?

Tem um nome muito comum entre o meu círculo de amigos essa menina. Numa história bonita gostava de se chamar Sofia. Um nome tão simples como tudo o resto que ela é. Uma pessoa que encanta pela sua singela simplicidade. Tem cabelos esvoaçantes, dourados, da cor do brilho do sol na areia da praia. Os seus olhos embalam-nos num lindo olhar da cor daquele mar profundo. Todo o resto da sua beleza, interior e exterior, se baseia numa essência do mais fofo que há.
Recordo-me vagamente de como nos conhecemos. Ambos caloiros naquela altura, ela tinha chegado de pára-quedas na segunda fase de ingresso e ainda andava um pouco meio perdida. Ela não sabe bem porquê, eu também não, mas havia uma troca de sorrisos quando nos olhávamos. Ela chegava-se então a mim e brincava com o fecho do meu casaco, abrindo-o e fechando-o distraidamente enquanto conversávamos. O destino empurrava-nos e ali estávamos nós brincando um com o outro, conhecidos há pouco tempo e já amigos. No seu sorriso encantador pouco tempo demorou a fazer surgir em mim um fraquinho por ela. Rapidamente ficámos grandes amigos e surgia uma paixoneta por ela. Nunca quis arriscar algo e o seu coração por aqueles dias foi arrebatado por uma intensa paixão, um pouco traidora, que ainda hoje a faz sofrer muito. Um caso complicado. Eu ia muitas vezes a casa dela e ela desabafava comigo sobre o que estava a viver, mas depressa isso teve que parar quando lhe expliquei que gostava dela de uma forma especial e me custava ouvi-la falar disso. Ficou um pouco surpresa com a revelação mas nunca de modo nenhum me tratou de forma diferente por causa disso. Paixão.
Consegui lidar com o que sentia de uma forma pouco custosa. Ela sempre foi uma jóia para mim. É uma miúda carinhosa e compreensiva. Nunca me lembro de discutir com ela. Temos feitios muito semelhantes e ela possui raras qualidades que eu adoro numa mulher. Mas o muito que tínhamos e temos em comum nunca me dificultou a vida, sempre apenas nos aproximou ainda mais como amigos. Duvido que tenha uma amiga com quem me relacione tão bem, com quem me sinta tão bem e à vontade. Basta entre nós uma troca de sorrisos para fiquemos um pouco mais contentes. Eu escrevo e ela aprecia, também é uma boa avaliadora do meu trabalho. A porta da casa dela está sempre aberta para mim e o seu ombro está sempre pronto para amparar as minhas lágrimas. Somos ouvintes compulsivos e atentos um do outro e não temos o menor problema em expor um ao outro qualquer pormenor mais sórdido da nossa vida por entre sorrisos. Entre nós nada há a esconder. Confiança total. Amizade. Uma forte e grande amizade que espero perdurar para o resto da minha vida.
Paixão? Amizade? Amor?
Já foi paixão. Esta forte amizade é até já amor. Ela é uma pessoa tão especial como muito poucas. A cumplicidade reina entre nós de forma natural e por entre brincadeiras. Junto a esta mora também o respeito que sempre foi essencial a um bom entendimento. Entreajuda, compreensão… Não sei que mais enumerar, mas perdem-se-me na cabeça elogios a tecer-lhe. Penso muitas vezes num tipo de mulher que poderia fazer de mim um homem feliz um dia. Ela é a primeira pessoa que me vem à cabeça. Duvido que haja alguma característica menos positiva nela que me tire do sério, se as há são apenas pequenos contratempos insignificantes. É uma mulher simplesmente bonita. Adoro mais que tudo o seu sorriso terno que me adoça o coração de uma forma tão especial. Adoro o seu cabelo, os seus olhos, o seu corpo simples e bonito, a sua doçura, a sua ternura, a sua compreensão, as suas bochechas que dão vontade de morder. Gosta de desporto, de ver e de jogar futebol, é uma mulher bem-disposta e é adorável quando faz beicinho. Foi ela que me ensinou a beber uns copos cá em Coimbra até! Arrisco a dizer que, aparte da minha mãe, ela é a mulher da minha vida. Sinto agora por ela, ao fim destes anos, um terno e forte amor. Amo-a mais que muito neste nosso amor de amigos. Não existe entre nós aquele “click” que nos poderia levar a ser amantes, a nossa amizade é mais séria que tudo. Nunca sequer um beijo indulgente na bochecha escorregou para outro sítio. O respeito também impera sobre nós, e esse respeito dá muito valor à especial relação de amor que temos. Sabemos e sempre soubemos ser apenas e só aquilo que realmente somos, grandes e bons amigos. Raros são os tristes momentos que tenho para recordar com ela. Adoro fazê-la babar-se de tantos elogios que lhe prego. Mas duvido que algum falte à verdade. Todos são bem merecidos. Com nenhuma infinita quantidade de beijinhos seria capaz de demonstrar o meu eterno carinho e gratidão para contigo, por isso limito-me a apreciar o nosso chegado abraço que tanto gosto em ti e que tanto mais nos aproxima. Um abraço que vale por milhares de palavras e gestos bonitos. Um abraço chegado, uma profunda troca de olhares directos em que penetramos na mente um do outro e dizemos “Obrigado por existires”. Deixamo-nos então e seguimos a nossa vida até ao dia seguinte. Mas que essa despedida nunca deixe de ser temporária, que sempre possamos reencontramo-nos e voltar a abraçarmo-nos. Adoro-te. Amo-te amiga. Beijinho doce e terno*

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Passando a mão pelo cabelo, pelas memórias

Passava a mão indulgente pelo cabelo num gesto muito comum em mim. Lembrei-me, numa faísca de memória, que ele já esteve curtinho, quase rapado. Só não me lembrava quando tinha sido isso. Remexi um pouco cá dentro e revirei pensamentos como quem procura uma peça de roupa num monte desarrumado. Aos poucos comecei a lembrar-me. Lembro-me de que o fiz quando trabalhei na fábrica nas férias. Lembro-me que, antes de pôr o boné na cabeça para entrar ao serviço, e tal como o gesto que me trouxe esta curiosidade, passava a mão na cabeça e ao sentir o cabelo quase rapado sorria com o coração aberto. Às vezes no lugar de imagens ficam-nos gravados no pensamento sentimentos que facilmente reconhecemos. Foram esses sentimentos que me fizeram chegar a nostalgia da razão para ter cortado assim o cabelo.
Pois é! Pois foi! Foi naquela brincadeira... Num gesto de solidária brincadeira, estava a minha irmã internada, desafiei o meu cunhado a raparmos os dois também o cabelo quando a minha irmã tivesse que o fazer. Ela por força do cabelo a cair, nós por força de um gesto no meio do pouco que se pode fazer na luta contra aquela doença. Nosso dito e nosso feito. Quando chegou a vez dela chegou também a nossa. Soube então por telefone que ela tinha rapado o cabelo nesse dia. Do mesmo jeito natural que sempre teve desde o início, dizia brincando que se ria ao ver o seu novo look ao espelho. Santa força… Corri então a tratar de ir rapar o meu. A minha irmã fez questão que não fosse a pente zero e a sua vontade foi cumprida.
Na tarde do dia seguinte lá fui eu com o meu cunhado, os dois novos “recrutas” visitar a minha irmã. Nunca me senti preocupado com a minha irmã, a sua boa-disposição nunca mo permitiu. Mas naquele dia foi diferente. Pensava lidar bem com a imagem que ia ter da minha irmã mas as coisas não foram tão bem assim. Assim que entrei no quarto sorri. Bem, quis sorrir, e que grande esforço tive que fazer… Tive que reprimir a voz amargurada e as lágrimas não rebentaram por pouco… Mas ela sorria, sempre no seu sorriso de quem é convicto de que aquilo que não nos mata torna-nos mais fortes. Riu do nosso aspecto semelhante ao seu, e nós, contagiados, sorrimos com ela. As lágrimas a brotar que antes me faziam brilhar os olhos de tristeza, chocado com o seu aspecto, com a cabeça desprotegida que reflectia o estado frágil da sua saúde, faziam agora brilhar os olhos de alegria pela sua alegria. Era com gosto e com o mesmo brilho nos olhos que eu explicava a quem me perguntava, a razão do meu novo corte de cabelo assim radical.
No meio da minha vida já perco memórias umas por entre as outras. Às vezes já me sinto velho. Não com 60, 70 ou 80 anos, mas já com duas décadas de vida que há pouco deixaram de ser uma infância. Já chorei muito como criança e também já chorei como homem que sou há pouco tempo. Ainda há pouco tinha os meus 5 anos e passeava de carro com o meu padrinho. Ainda há uns dias tinha 10 anos, chorava a morte do meu padrinho há uns anos e lidava com a minha nova vida ao mudar de escola. Ainda agora tinha 15 anos, viajava pela primeira vez para fora do país até França. Ainda ontem tinha 18 anos, atingia a maioridade e gozava da nova liberdade de poder conduzir. Hoje tenho os meus simpáticos 20 anos e sou quem sou, sou aquilo que sou, o moralista que nasci, com os meus defeitos e as minhas virtudes que fazem, aqueles que gostam de mim, gostar de mim. Como eu gostava às vezes de não ser assim… mas é assim mesmo que sou, para o bem e para o mal.
O Tempo, esse cabrão pecaminoso por gula, que se consome a si próprio na exaustão da sua fome regular e insaciável, não perdoa. Não deixa escapar um cabelo de ficar branco, uma ruga de surgir, não deixa escapar o Presente de acontecer. Às vezes gostava de o deter, outras vezes de o acelerar, mas não sou capaz. Ninguém o é. E é por culpa dele que me sinto velho, que sinto que já tanta coisa aconteceu pela minha calma vida fora. É por causa disso que até já sinto os meus pensamentos e memórias baralhados e esquecidos.
Antes fosse só por mim que “esse bandido clandestino” com “mais olhos que barriga” me trouxesse a amargura com que me mata. No outro dia andava a brincar nas minhas bricolas, arranjando umas canalizações de rega, entretido nestas tarefas que me fazem sentir tão bem. Lá de atrás de casa onde eu andava na minha ocupação, observei a minha mãe que vinha a pé pela beira da estrada, vinda da sua jorna de limpeza na capela ali ao pé de casa. Há muito que já é difícil encontrar-lhe no rosto um sorriso regular, a morte do seu irmão tirou-lhe anos de felicidade. Agora, os 50 anos com que já conta fazem-na caminhar de forma curvada e triste. Tanto que me custa senti-la envelhecer! Os esforços que fazia na sua vida jovial têm agora que ser acompanhados pela minha ajuda. Ela, até por força das doenças que começam a aparecer exponencialmente nesta idade, já precisa às vezes que a ajude nas mais simples tarefas como mudar uma panela do fogão para a mesa, levantar a mesa da cozinha para lavar por baixo ou ir buscar alguma lenha para fazer uma fogueira. As tendinites crónicas, os princípios de osteoporose, os problemas associados à chegada à menopausa, a hipertensão, os problemas de nervos, são exemplos do que já faz parte do seu quotidiano. Custa-me, dói-me ver a sua angústia e o seu sofrimento de quem tem apenas a culpa de carregar o peso do passar do Tempo nas suas costas.
Esse cabrão do Tempo…
Lá atrás, no meio da ceara do milho, andava meu pai. Lembro-me de, em pequena criança, lhe ter pedido para jogar à bola comigo. Disse-me que não podia, não tinha tempo, que um dia que pudesse iria comigo até ao campo ali ao lado para jogar. Sei que lá vão 15 anos volvidos desde essa promessa e cumprida ela nunca foi. Era uma promessa simples mas ficou-me gravada na memória de uma forma muito especial. Hoje ele conta com 57 primaveras e já há muito que deixou de poder cumprir essa promessa. Nunca o censurei e nunca o farei, sei que não o fez porque não foi capaz. Tempo livre nunca foi o seu forte, sempre se privou de vida própria para poder tratar do seu trabalho em casa e do seu emprego de forma a garantir aos seus filhos uma vida o mais folgada possível. E esse esforço também se nota nele, apesar da sua engraçada barriga redonda que ostenta, o seu corpo é magro e o esforço assim o faz. Trabalha como formiga incansável e às vezes gostava que não se importasse de sacrificar um pouco da minha vida folgada para viver ele próprio um pouco a vida. Mas ele não é capaz. E o Tempo pesa-lhe nas costas.
Estão velhos. Estou velho. Ficaremos ainda mais velhos. Digo-lhes que aproveitem um pouco mas eles têm esse espírito de pais que não muda, “burro velho não toma ensino”. Que posso fazer eu? Deixar esse cabrão continuar a correr na sua angústia desenfreada de fome de caminho, de fome de Futuro. Que vá. Que vá e que me leve a dias melhores. Que faça as velas esticarem com a força de ventos de mudança para melhor. Que faça de mim um homem melhor, ainda que tenha que chorar. E já se sabe como é quando um homem chora… porque um homem também chora que assim tem que ser. Caminhando caminhando lá se vai andando. Hoje assim, amanhã nunca igual.