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sábado, 26 de março de 2011

Vagueando



Não fazer nada também cansa, e eu estava cansado. Saí à rua para ir dar um passeio de carro. Enquanto descia as escadas, percorrendo as mensagens no telemóvel, deparei-me com um rascunho, algo que acho que tinha escrito para mim mesmo: "a vida nunca te entrega algo com que não consigas lidar".
Se fosse outro dia, a outra hora, noutro momento que não este, talvez aquela frase me tivesse feito parar. Mas não hoje. Arranquei então, bulindo por aí fora, perdido no gozo da atenção à estrada, e fui perscrutar caminhos nunca antes por mim explorados. Vivo há cinco anos nesta cidade e nunca ter vagueado pelas fronteiras deste pequeno sítio, faz-me sentir que vivo fechado numa caixa de fósforos. A noite é uma coisa estranha, um mundo à parte. Talvez por isso me atraia tanto. E, como não me acontecia desde há muito tempo, senti o oxigénio do silêncio a entrar-me alma dentro como se não houvesse amanhã. Abri as janelas do carro e acelerei naquela recta, tanto quanto o motor rugindo de aperto dava... 160... 170... e travei, e afrouxei, porque o meu pai se empenhou em oferecer-me algo de valor que não tenciono destruir por desrespeito. Parei ali à beira de uma rua abandonada, tipo cenário de filme americano. Vi um cartaz a anunciar o desaparecimento de uma senhora, coisa que não me lembro de alguma vez ter visto por terras lusas, desde pequenino. Verdade. Fugi dali, o ambiente era mais hostil que acolhedor. Fui procurar o subterfúgio dos arredores e dei com uma ponte velha, abandonada, em desuso. Fiquei curioso ali a olhar, a pensar no que aquilo já foi, no que haverá de ser. Caminhei e aproximei-me da borda. A leve brisa trazia um toque melodioso a um cenário estocástico dentro de mim. E olhei para baixo. E reflecti. E voltei para trás. Porque de tragédias está o mundo cheio, e eu hei-de ter o meu tempo. Mas que desejo! A água à minha volta, sem outra coisa para ouvir, para me cobrir como uma concha, e me fechar para a miséria... Corro em esforços que tudo o que recebem são gozo e desprezo, e ainda assim o meu coraçãozinho bate cada vez mais forte. Ser assim desvalorizado dói como poucas mazelas. Vale que a raiva já facilmente suplanta e faz esquecer tudo o resto. Mas que raio de meio é este que me faz segurar a minha própria vida por pena e para chupanço dos outros? Sou eu assim tão tolo e desmedido da realidade? Corri todos os meus contactos e ninguém se mostrou disponível. Logo hoje! Logo hoje... Junto à estrada um mendigo aguarda qualquer coisa dentro de uma paragem de autocarros. Triste homem, não passam autocarros a esta hora noite dentro! Parei à sua beira e convidei-o a entrar. Olhou-me desconfiado. Ofereci-me a pagar-lhe uma bifana nas rolotes à beira-rio. Não hesitou muito, não se pode dar a esse luxo. O cheiro denunciava a falta de um banho há uns bons dias. Tentou meter conversa mas eu gentilmente cortei-lhe o discurso e dei-lhe a entender que não pretendia conversa. Levei-o ao seu melhor manjar dos últimos tempos e ele não demorou a dar a volta ao pão bem filado com conduto. Bebeu um refrigerante, também por minha conta, arrotou satisfeito e ficou a olhar para mim. Caminhei em direcção ao carro e ele seguiu-me obediente e agradecido. Fiz a viagem de regresso e deixei-o onde o tinha pegado. Sentou-se calmo, impávido, sereno, questionando-se mas não o transparecendo. Arranquei devagar enquanto os olhos dele me seguiam, ainda duvidosos das razões ou da realidade sequer. A caminho de casa vejo um grupo de estranhos que pendura balões nos carros estacionados pela rua fora, e contam já com uma bela empreitada... Estranha noite esta, estranha noite esta!

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