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segunda-feira, 7 de julho de 2008

Passando a mão pelo cabelo, pelas memórias

Passava a mão indulgente pelo cabelo num gesto muito comum em mim. Lembrei-me, numa faísca de memória, que ele já esteve curtinho, quase rapado. Só não me lembrava quando tinha sido isso. Remexi um pouco cá dentro e revirei pensamentos como quem procura uma peça de roupa num monte desarrumado. Aos poucos comecei a lembrar-me. Lembro-me de que o fiz quando trabalhei na fábrica nas férias. Lembro-me que, antes de pôr o boné na cabeça para entrar ao serviço, e tal como o gesto que me trouxe esta curiosidade, passava a mão na cabeça e ao sentir o cabelo quase rapado sorria com o coração aberto. Às vezes no lugar de imagens ficam-nos gravados no pensamento sentimentos que facilmente reconhecemos. Foram esses sentimentos que me fizeram chegar a nostalgia da razão para ter cortado assim o cabelo.
Pois é! Pois foi! Foi naquela brincadeira... Num gesto de solidária brincadeira, estava a minha irmã internada, desafiei o meu cunhado a raparmos os dois também o cabelo quando a minha irmã tivesse que o fazer. Ela por força do cabelo a cair, nós por força de um gesto no meio do pouco que se pode fazer na luta contra aquela doença. Nosso dito e nosso feito. Quando chegou a vez dela chegou também a nossa. Soube então por telefone que ela tinha rapado o cabelo nesse dia. Do mesmo jeito natural que sempre teve desde o início, dizia brincando que se ria ao ver o seu novo look ao espelho. Santa força… Corri então a tratar de ir rapar o meu. A minha irmã fez questão que não fosse a pente zero e a sua vontade foi cumprida.
Na tarde do dia seguinte lá fui eu com o meu cunhado, os dois novos “recrutas” visitar a minha irmã. Nunca me senti preocupado com a minha irmã, a sua boa-disposição nunca mo permitiu. Mas naquele dia foi diferente. Pensava lidar bem com a imagem que ia ter da minha irmã mas as coisas não foram tão bem assim. Assim que entrei no quarto sorri. Bem, quis sorrir, e que grande esforço tive que fazer… Tive que reprimir a voz amargurada e as lágrimas não rebentaram por pouco… Mas ela sorria, sempre no seu sorriso de quem é convicto de que aquilo que não nos mata torna-nos mais fortes. Riu do nosso aspecto semelhante ao seu, e nós, contagiados, sorrimos com ela. As lágrimas a brotar que antes me faziam brilhar os olhos de tristeza, chocado com o seu aspecto, com a cabeça desprotegida que reflectia o estado frágil da sua saúde, faziam agora brilhar os olhos de alegria pela sua alegria. Era com gosto e com o mesmo brilho nos olhos que eu explicava a quem me perguntava, a razão do meu novo corte de cabelo assim radical.
No meio da minha vida já perco memórias umas por entre as outras. Às vezes já me sinto velho. Não com 60, 70 ou 80 anos, mas já com duas décadas de vida que há pouco deixaram de ser uma infância. Já chorei muito como criança e também já chorei como homem que sou há pouco tempo. Ainda há pouco tinha os meus 5 anos e passeava de carro com o meu padrinho. Ainda há uns dias tinha 10 anos, chorava a morte do meu padrinho há uns anos e lidava com a minha nova vida ao mudar de escola. Ainda agora tinha 15 anos, viajava pela primeira vez para fora do país até França. Ainda ontem tinha 18 anos, atingia a maioridade e gozava da nova liberdade de poder conduzir. Hoje tenho os meus simpáticos 20 anos e sou quem sou, sou aquilo que sou, o moralista que nasci, com os meus defeitos e as minhas virtudes que fazem, aqueles que gostam de mim, gostar de mim. Como eu gostava às vezes de não ser assim… mas é assim mesmo que sou, para o bem e para o mal.
O Tempo, esse cabrão pecaminoso por gula, que se consome a si próprio na exaustão da sua fome regular e insaciável, não perdoa. Não deixa escapar um cabelo de ficar branco, uma ruga de surgir, não deixa escapar o Presente de acontecer. Às vezes gostava de o deter, outras vezes de o acelerar, mas não sou capaz. Ninguém o é. E é por culpa dele que me sinto velho, que sinto que já tanta coisa aconteceu pela minha calma vida fora. É por causa disso que até já sinto os meus pensamentos e memórias baralhados e esquecidos.
Antes fosse só por mim que “esse bandido clandestino” com “mais olhos que barriga” me trouxesse a amargura com que me mata. No outro dia andava a brincar nas minhas bricolas, arranjando umas canalizações de rega, entretido nestas tarefas que me fazem sentir tão bem. Lá de atrás de casa onde eu andava na minha ocupação, observei a minha mãe que vinha a pé pela beira da estrada, vinda da sua jorna de limpeza na capela ali ao pé de casa. Há muito que já é difícil encontrar-lhe no rosto um sorriso regular, a morte do seu irmão tirou-lhe anos de felicidade. Agora, os 50 anos com que já conta fazem-na caminhar de forma curvada e triste. Tanto que me custa senti-la envelhecer! Os esforços que fazia na sua vida jovial têm agora que ser acompanhados pela minha ajuda. Ela, até por força das doenças que começam a aparecer exponencialmente nesta idade, já precisa às vezes que a ajude nas mais simples tarefas como mudar uma panela do fogão para a mesa, levantar a mesa da cozinha para lavar por baixo ou ir buscar alguma lenha para fazer uma fogueira. As tendinites crónicas, os princípios de osteoporose, os problemas associados à chegada à menopausa, a hipertensão, os problemas de nervos, são exemplos do que já faz parte do seu quotidiano. Custa-me, dói-me ver a sua angústia e o seu sofrimento de quem tem apenas a culpa de carregar o peso do passar do Tempo nas suas costas.
Esse cabrão do Tempo…
Lá atrás, no meio da ceara do milho, andava meu pai. Lembro-me de, em pequena criança, lhe ter pedido para jogar à bola comigo. Disse-me que não podia, não tinha tempo, que um dia que pudesse iria comigo até ao campo ali ao lado para jogar. Sei que lá vão 15 anos volvidos desde essa promessa e cumprida ela nunca foi. Era uma promessa simples mas ficou-me gravada na memória de uma forma muito especial. Hoje ele conta com 57 primaveras e já há muito que deixou de poder cumprir essa promessa. Nunca o censurei e nunca o farei, sei que não o fez porque não foi capaz. Tempo livre nunca foi o seu forte, sempre se privou de vida própria para poder tratar do seu trabalho em casa e do seu emprego de forma a garantir aos seus filhos uma vida o mais folgada possível. E esse esforço também se nota nele, apesar da sua engraçada barriga redonda que ostenta, o seu corpo é magro e o esforço assim o faz. Trabalha como formiga incansável e às vezes gostava que não se importasse de sacrificar um pouco da minha vida folgada para viver ele próprio um pouco a vida. Mas ele não é capaz. E o Tempo pesa-lhe nas costas.
Estão velhos. Estou velho. Ficaremos ainda mais velhos. Digo-lhes que aproveitem um pouco mas eles têm esse espírito de pais que não muda, “burro velho não toma ensino”. Que posso fazer eu? Deixar esse cabrão continuar a correr na sua angústia desenfreada de fome de caminho, de fome de Futuro. Que vá. Que vá e que me leve a dias melhores. Que faça as velas esticarem com a força de ventos de mudança para melhor. Que faça de mim um homem melhor, ainda que tenha que chorar. E já se sabe como é quando um homem chora… porque um homem também chora que assim tem que ser. Caminhando caminhando lá se vai andando. Hoje assim, amanhã nunca igual.

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