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sexta-feira, 13 de junho de 2008

Amarrar-se ou soltar-se

“A Âncora nunca falhara. Esforçara-se por isso num sacrifício silencioso. E desprezava quem não fazia o mesmo.
-Sou a Âncora! Tudo pode falhar no barco, mas eu não falharei! Sem mim todos ficam em perigo. Sou a peça mais importante!
Amarrada na quilha da proa, a Âncora falava consigo mesma. Deslizava contente no barco, junto à costa, no mar do entardecer de Verão.

Saindo do nada, o Balão vermelho, rechonchudo, passa dançando. Os raios de Sol ao encontrá-lo, difundiram-se em clarão avermelhado como se fosse um novo astro. A Âncora ficou impressionada:
-É lindo! Mas de que lhe serve? Parece só ter o objectivo de se deixar levar – não interessa onde, nem se é essa a suja vontade. Tolo Balão! Que desperdício de existência! Levado à toa, pavoneando-se por nada, sem qualquer utilidade! Eu, sim, faço a diferença!
Cada vez mais contente consigo mesma, olha com desprezo o Balão dançante. Do alto, feliz com a vida nova, o Balão deixava-se embalar nesta aventura que não escolhera. Era apenas “um balão” quando o vento passou de rajada e o apanhou distraído. Então, sentiu-se levantar como se voasse. Estava encantado. Queria permanecer assim! Mas, foi breve. O vento arrastava-o para longe, muito longe.
Começou, então, a sentir frio. Pela primeira vez, sentiu-se perdido. Lá em baixo, uma paisagem azul, sempre igual. Ou não!? Qualquer coisa movia-se. Era um barco. Queria descer ao seu encontro. Mas, sentiu um calorzinho especial quando um raio de Sol o inundou. Virou-se, revirou-se, fazia piruetas… Sentia-se reluzir como se uma explosão se luz tivesse acontecido dentro de si. Era novamente um balão feliz!
-Não sei onde estou, mas alguém há-de cuidar de mim! Não tenho que me preocupar!
O Balão subia, deixava-se levar. Sem perceber porquê, sentiu uma pressão e um peso insuportável. Não tinha nada a se apegar. Não conseguia libertar-se, nem sequer pensar. Não sabia onde estava, para onde iria… afinal. Não sabia nada e deixou-se ir. Sentiu-se a desintegrar. Rebentou! Ficou em estilhaços. Cada bocadinho de balão foi caindo, perdido no espaço, até desaparecer no mar.
A Âncora presenciou tudo horrorizada. Pela experiência, sabia que o risco era grande: não se podia abandonar assim ao vento, sem controlo. Que irresponsabilidade! Para quê destruir-se? Sentia-se mais confortável, toda a vida acorrentada, a fazer os mesmos percursos, do que ser livre e arriscar a partir – liberdade que até já sonhara em segredo, mas que abandonara sem resistência. Olhando para o seu desgaste e ferrugem, reforçou a certeza de que o seu destino era o melhor que podia desejar.

No convés, o João tinha a primeira lição. O pai construíra com ele o Papagaio de papel leve e colorido, colado numa estrutura hexagonal quase perfeita. Era uma arte de família que o pai tinha todo o orgulho de lhe ensinar. A completar o trabalhar de ambos, escolheram o melhor local para apanhar o vento de feição. O pai subiu a escada e assobiou para o João:
-Podes preparar! Espera! Puxa agora!
Largado no ar, o Papagaio sente o vento a levantá-lo. Mas um solavanco do João a puxar o fio, fá-lo descer repentinamente e de imediato galgar o céu, cada vez mais alto. À medida que o Papagaio “pede” para subir, o João rejubila e faz deslizar o fio. João e pai, lado a lado, vão ajustando o impulso e o comprimento do fio à direcção do vento.
-Que lindo é tudo cá do alto! Que leve me sinto… Uau! – é a expressão máxima do Papagaio de cauda multicolor.
O Papagaio olha de relance para o João, assegurando-se de que o pai estava lá.
-O João é muito arrojado e isso dá-me espaço para voar, mas a sua inexperiência pode ser perigosa e deixar-me enroscar no mastro, ou cair nas ondas, ou… Bom, está bem acompanhado: conheço a perícia e prudência do pai. É perito a controlar quedas. Transforma-as em impulsos para novas alturas.

O Papagaio olhou para si e para o espaço, com olhos de quem está no alto, livre e leve. Viu a sua estrutura cuidadosamente montada, sentiu-se forte, resistente a rajadas potentes. Sentiu o valor de ser também feito deste fio que oferece protecção, impulso, reacerto, possibilidade de voar e de regressar. E olhando a proa do barco, viu a Âncora acorrentada, ainda robusta, amarelada pela ferrugem e desgastada pelo tempo e pelas tempestades. Estava orgulhosa, pronta a actuar. Ela olhava para ele, Papagaio, por momentos esquecida do seu peso que fazia parar o barco. E, do canto, a Âncora segredou-lhe:
-Prometes, Papagaio, nunca te desprender do fio que te liga ao real e aprender a sonhar, subir, voar, sem te deixares enferrujar ou destruir? Quando levantas voo, alimentas a magia dos sonhos de menino e semeias a esperança colorida de quem constrói papagaios!
Desde então, sempre que o Papagaio levanta voo, leva na bagagem os sonhos de menino e a liberdade de quem sabe colorir o céu, construindo papagaios.”

A história não é minha, mas dificilmente algo podia transcrever melhor o meu frequente dilema. Vivo muitas vezes com o espírito da Âncora, agarrado a tudo e com medo de me soltar. Nunca fui como o Balão que se deixa soltar sem estar preso por um fio, sem segurança, sem uma ligação mínima, mas felizmente estou a aprender a viver como o Papagaio, a soltar-me sem deixar de estar totalmente amarrado, com um fio de segurança a prender-me ao real. As quedas são reais, mas se as houver também servirão para mim como impulso a novas aventuras e consolidarão a minha experiência
Devemos dar um espaço a todos os nossos sonhos. Devemos saber subir bem alto e não ter medos ou preconceitos que nos impeçam de sonhar ou de levar os nossos sonhos avante. A preparar-me para escrever o livro, a caminho da Roménia, sou agora um Papagaio feliz preso lá no alto a observar quão bonitos são os sonhos de menino, de um menino agora grande por fora, um pouco pequeno ainda por dentro, próximo dos sonhos, próximo da felicidade.

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