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sexta-feira, 13 de junho de 2008

Um longo dia

Estava empanturrado no sofá a digerir as telenovelas que a minha mãe vê quando recebi uma mensagem. Os meus afilhados tinham ido dar uma volta ali por aquelas bandas e queriam que eu lhes pagasse um copo. Já era tarde e as reclamações da minha mãe logo se fizeram sentir. Ignorando o chorrilho de críticas saí de casa porta fora em direcção ao bowling. Faz-me falta viver, deixem-me aproveitar antes de ficar um velho caquético que não pode sequer berrar com os árbitros sem se habilitar a ter uma crise de hipertensão. Prego a fundo e com a adrenalina a bombar, cheguei num instante. Lá estavam eles na paródia com os copos de imperial vazios à frente.
A noite foi calma mas porreira. Sempre a sumo mas animado, juntei-me a eles na claque do karaoke. Uns joguitos na máquina de discos, umas caralhadas e gargalhadas ocuparam-me ali umas horas. De regresso a casa, mais calmo e devagar, fui-me deitar.
Haviam passado pouco mais de três horas e o despertador do telemóvel já me arrancava do meu sono reparador. Saltei da cama a custo e tratei de me preparar. O carro apitou lá fora. Seguimos para a estação e felizmente a maldita da greve não atrasou o comboio mais que vinte minutos. Carregando o rapaz às costas por causa dos altos degraus lá entrei com a minha campanha no comboio. Well, se íamos um pouco a dormir esse sono não durou muito. Malta da Figueira já embarcada fazia a festa no comboio, uma festa animada bem regada com cerveja, Malibu, Vodka, um saboroso de 12 anos e Coca-Cola para as misturas. O revisor era já apelidado por “pica”. “Papa decotes alééé, papa decotes alééé…”, “e salta pica, e salta pica, olé, olé!”, “Ia o pica na rua a correr, com um caralho no cu a bater, quanto mais o pica corria, mais o caralho no cu lhe batia” esta sem ele ouvir, claro. Bem, digamos que nem mesmo o “pica” conseguiu aguentar o seu semblante sério por muito tempo e apesar do barulho o resto da tripulação parecia rendida à animação daqueles bobos regados a álcool.
Desembarcados já em Lisboa eram horas de almoço. Apanhámos o metro na direcção da Bela-Vista. Já se sentiam as formigas a caminhar na direcção do mel. Sempre por acessos reservados e entradas exclusivas à imprensa para facilitar a chegada do rapaz, lá entrámos nós ao mesmo tempo que os fanáticos doidos que ambicionavam ser os primeiros a inaugurar o recinto naquele dia e chegar aos lugares bem perto do palco.
O acesso condicionado para pessoas com dificuldades era uma bancada perfeita com vista mesmo exclusiva para o palco e para aquela multidão eufórica. O que se seguiu com o início dos concertos… bem, só visto e ouvido. Os arrepios com aquela visão trepidante e com o som envolvente eram uma constante. Por muito que gostasse nunca conseguiria transcrever aqueles sentimentos fantásticos que lá se viviam. O clímax veio mesmo com os Linkin Park. Aqueles malucos sabem mesmo como dar a volta à cabeça de uma multidão já eufórica.
Só mesmo quem lá esteve pode saber como foi. Fica a certeza da vontade de um regresso em 2010.
Ui… Quem é que encontrava um táxi livre… Ao fim de umas horas lá conseguimos apanhar um táxi até ao oriente. Um curto fechar de olhos até à hora do comboio de regresso a casa. Entrando sentiu-se o silêncio, os nossos amigos não estavam ali para continuar a animação lol uma curta sesta até casa.
Um banho rápido. Vestido e pronto lá fui com os meus pais até Anadia. Vinha de uma directa e bem cansado, até porque na noite anterior apenas havia dormido umas trê horas. Esta ocasião era diferente. Íamos a um almoço de convívio de ex-combatentes do ultramar em Moçambique, já realizado há alguns anos no primeiro sábado do mês de Junho.
A bandeira da companhia de artilharia avistou-se ao longe à beira da estrada. A recepção foi feita com sorrisos e palmadas nas costas, alegria por poder reencontrar colegas e amigos oriundos do extremo Norte ao extremo Sul de todo o país. Afinal muitos deles já ficaram pelo caminho e não presenciam este dia como os que cá estão. A conversa é animada, a esposas trocam impressões e as que se conhecem trocam novidades. Os maridos envoltos na necessária boa disposição trocam gargalhadas divertidas e animadas. Eu e o fotógrafo registamos o momento com a máquina de filmar, gravamos as conversas mas os sentimentos não cabem na fita.
-Pessoal, o almoço está à espera!
As gentes entram então no restaurante. É pequeno e não tem muitas condições, mas a proximidade humana nunca fez mal a ninguém. Observo então quem está. Poucos são os jovens como eu que gostam de acompanhar os pais a presenciar a nostalgia destes encontros, e vê-se de ano para ano a evolução da descendência ali presente.
O Ferreira, homem do Norte, ali sentado ao meu lado não dispensa a sua função de comediante e anima a mesa com piadas arrojadas. A mesa adere, ele sabe pôr as pessoas a rir com a sua boa disposição. Limpas as entradas chega o primeiro prato. Lá a meio do arroz de marisco confessa-me o Ferreira, meio a sério, meio a brincar:
-Come rapaz, come, come para compensar a fome que o teu pai passou lá no mato!
Eu, sorridente e bem disposto concordo com ele:
-Oh homem, fique descansado que se não como mais é porque não cabe…
-Então enfia para dentro de um saco e leva para casa! Come para compensar os meses que o teu pai passou a ração de combate!
Podia ser um conversa séria mas era apenas uma brincadeira de quem corajosamente sorri do Passado, do que já lá vai, do sofrimento e da angústia.
O leitão veio a seguir para honrar a fama daquela região ali à beira da Bairrada.
Após a sobremesa e partido o bolo já as conversas vão bem rodadas. Nalgumas vezes noutros anos um discurso irrompeu de um corajoso em recordar cenas daqueles tempos. Sendo apenas sincero e directo rapidamente os olhos de todos ficaram marejados de lágrimas. Aquele homem, de quem já não me recordo bem do nome nem sequer da sua cara, contava ali as cenas de horror que passou. Uma guerra é sempre uma guerra. Nunca é pacifica. A juntar-se à fome, aos enjoos da ração de combate, às doenças das águas inquinadas, à paranóia de só ver mato à frente, junta-se a angústia de ter que matar. De matar ou ser morto. Era guerra que se tinha vivido e ele ali contava. Soluçava nas palavras e os seus olhos brilhavam no cristal das suas lágrimas de profunda tristeza. Afinal não é todos os dias que se nos morre um camarada amigo nos nossos braços, com a nossa dura sensação de nada poder fazer a latejar no peito… Desatava aos tiros, tentava vingar a morte do amigo, procurava a calma no meio de tudo. Como lhe custou reviver esse momento para o partilhar. É duro. Foi duro. Abstenho-me às vezes de fazer perguntas ao meu pai nesta forte curiosidade de saber pelo que passou para não o magoar com as suas duras memórias daquela vida. Limito-me a vê-lo comentar as fotos que por lá tirou, os amigos que o destino separou dele e que ele confessa como gostaria de reencontrar.
Este ano foi calmo, não houve discursos. O grupo saiu para o abrigo da sombra de uma árvore ali perto e foi à foto de grupo. Brincando com o marchar, com o abrir fileiras, com as paródias que também houve naquele tempo, a animação faz-se sentir. Dois “click” e volta-se para o fresquinho da sombra do restaurante. É sempre um dia de fortes emoções, da mais forte alegria à mais dura tristeza. As conversas avançadas e já longas começam a rumar em direcção ao seu términos. Em jeito já de despedida brotam as últimas lágrimas, daquela esposa que lida com um problema crónico do filho diariamente, daquela esposa que conta a leucemia com que lida a sua filha, daquela esposa que conta como perdeu o seu filho num acidente de automóvel, daquela outra esposa, que em solidariedade, conta como um colega dos seus maridos perdeu a esposa assassinada num assalto à sua própria casa. Os maridos têm angústias do mesmo modo, são os pais daqueles filhos de que as esposas são mães. Partilham as suas doenças, os seus males, as suas tristezas, os problemas e os cancros da sociedade. Mas, vividos e corajosos como a vida os fez, já todos com mais de cinquenta, partilham também a boa disposição escondida lá no fundo, a esperança comum de dias melhores e de que para o próximo ano, noutro ponto do país, se possam encontrar vivos e não piores.
Restam poucos e muitos já rumam a caminho de casa. É a nossa vez, queremos chegar a casa a tempo do jogo de Portugal. O jogo valeu a pena. Jantado e cansado, com o meu pequeno coração atrofiado de emoções fortes, do dia e de há meses atrás, busco o meu leito. A cabeça pesa e não dá azo a muitos pensamentos. Em poucos minutos adormecia, estafado por um longo dia…

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